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23 de dezembro de 2025

Suassuna levou sua coluna na Folha como uma grande missão – 23/12/2025 – Folha 105 anos

Suassuna levou sua coluna na Folha como uma grande missão – 23/12/2025 – Folha 105 anos

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Ariano Suassuna estreou sua coluna na Folha com receio. “Somente agora, aos 71 anos de idade”, ele escreve, assume pela primeira vez a “pesada responsabilidade de assinar uma coluna num jornal importante como este”.

Na coluna, publicada em 1999, ele lembra que já teve outras vidas no jornal: na década de 1950, fez crítica literária na Folha da Manhã e crítica teatral no Diário de Pernambuco, no Recife. Depois, nos anos 1970, passou a publicar artigos que também tocavam “o assunto político“, alguns deles, inclusive, na Folha.

O incômodo, porém, não é de currículo. Ele diz que não escreve “sem preocupações” e que, apesar de tentar se convencer de que aquilo era “apenas mais um trabalho”, persiste uma velha certeza: a “convicção exaltada” de que o trabalho do escritor tem “alguma coisa de missão”.

Leia a seguir o texto completo, parte da seção 105 Colunas de Grande Repercussão, que relembra crônicas que fizeram história na Folha. A iniciativa integra as comemorações dos 105 anos do jornal, em fevereiro de 2026.

A “missão” (2/2/1999)

Durante algum tempo escrevi regularmente para jornais. Na década de 50, publiquei crítica literária na “Folha da Manhã” e crítica teatral no “Diário de Pernambuco”, ambos do Recife. Na de 70, passei a publicar artigos que, entre outras coisas, abordavam o assunto político. Alguns deles foram publicados pela Folha; mas o órgão que os divulgava semanalmente era aquele mesmo “Diário de Pernambuco” do qual, 20 anos antes, eu fora crítico e colunista de teatro.

Então, é somente agora, aos 71 anos de idade, que assumo, pela primeira vez, a pesada responsabilidade de assinar uma coluna num jornal importante como este.

Não posso dizer que o faço sem preocupações. Apesar de todas as tentativas para me tranquilizar, para me convencer de que este é apenas mais um trabalho que encaro profissionalmente como escritor, lá bem dentro de mim, permanece uma sensação que me acompanha desde a juventude: a convicção exaltada de que o trabalho dos escritores tem alguma coisa de missão.

Ora, li há algum tempo o livro “Duas Meninas”, obra escrita por um crítico agudo e inteligente, Roberto Schwarz, e na qual existem expressões irônicas, dirigidas exatamente contra os escritores que se julgam encarregados de uma “missão”. Provavelmente Schwarz está certo; talvez o melhor, mesmo, fosse eu tomar outro rumo e deixar essas preocupações com o Brasil para gente mais lúcida do que eu. Principalmente se nos lembrarmos de que todos nós, artistas -pintores, dançarinos, músicos, escritores-, somos dissidentes e sectários, cada um de nós desviado, a seu modo, do pensamento comum, da visão comum, do comportamento comum e, também, por isso, quase sempre em desacordo com a maioria.

Como consequência (e talvez até como corretivo que meu subconsciente segrega contra aquela opinião pretensiosa sobre a “missão” do escritor), outra convicção também me acompanha há muito tempo: a de que a arte e a literatura só interessam verdadeiramente àqueles que entendem o dialeto da tribo, aos integrantes da seita heterodoxa à qual pertencemos, e que, como se fosse pouco, ainda abriga em seu âmbito (multiplicadas, diferentes, opostas, às vezes até inimigas) inumeráveis subseitas e heresias, cada uma delas às vezes integrada somente por um fiel -“o profeta” extraviado e solitário que a codificou.

De qualquer modo, fechei os olhos, aceitei o convite e vou em frente, como se ainda fosse aquele rapaz que, aos 20 anos, escrevia como se a sorte do meu país dependesse de meus poemas, de minhas peças, de meus ensaios, de meus romances. A frase irônica de Roberto Schwarz foi escrita no contexto de uma comparação entre Machado de Assis e Euclides da Cunha. Então, que ele me perdoe; ainda hoje, aos 71 anos, gosto mais de Euclides da Cunha, com todos os seus defeitos (que reconheço), do que de Machado de Assis, com todas as suas qualidades (que também reconheço). E como, por outro lado, não pretendo ser mestre de ninguém, pode ser que, neste presente escuro que estamos vivendo, até mesmo as dúvidas que me dilaceram possam vir a ser úteis pelo menos como matéria de reflexão. Se assim for, nem que seja somente a meus próprios olhos, minha presença aqui estará justificada.



Fonte.:Folha de S.Paulo

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