O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) pretende conceder ao menos R$ 18,5 bilhões em descontos a representantes do agronegócio interessados em regularizar a grilagem de 600 mil hectares de terras públicas no Pontal do Paranapanema, extremo oeste do estado de São Paulo.
O cálculo foi feito pelo UOL a partir dos valores mínimos estimados no Mapa de Terras 2023 elaborado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e usado como referência em todo o país para precificar lotes rurais. A área em negociação corresponde a 2,5% do território estadual —quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo.
Segundo o governo, os descontos evitam gastos maiores com indenizações por benfeitorias feitas em ocupações centenárias.
“Trata-se de áreas registradas em cartório há mais de um século. A anulação desses registros, somada à indenização das benfeitorias, representaria maior ônus financeiro ao Estado do que a adoção do modelo previsto na legislação”, afirmou a Secretaria de Agricultura e Abastecimento, em nota.
As terras ocupadas irregularmente, hoje usadas para criação de gado, produção de etanol e cultivo de soja e cana, passaram a ser vendidas por 10% a 20% do valor de mercado desde o início da gestão Tarcísio, em 2023, independentemente da capacidade financeira dos ocupantes.
Levantamento do UOL baseado em 217 editais publicados no “Diário Oficial” nos últimos três anos mostra que descontos individuais chegam a R$ 25 milhões, beneficiando até grandes empresas.
A produtora de biocombustíveis Atvos, antiga Odebrecht Agroindustrial, comprou 508 hectares na cidade de Teodoro Sampaio avaliados pelo governo em R$ 8,6 milhões por apenas R$ 1,8 milhão.
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A companhia, uma das líderes nacionais na produção de biocombustíveis, com 3,3 bilhões de litros de etanol anuais, não se manifestou sobre a negociação.
Outro caso é o da Agropecuária Vista Alegre, com capacidade para produzir 594 toneladas de ração por dia e abrigar 33 mil cabeças de gado. A empresa recebeu um desconto de 78% para comprar 121 hectares em Presidente Bernardes, pagando R$ 403 mil em vez de R$ 1,8 milhão. Procurada, também não respondeu aos contatos da reportagem.
Entre os maiores beneficiados até agora em termos absolutos estão os proprietários da Fazenda Itapiranga, em Marabá Paulista. Com redução de 90% (R$ 25 milhões), puderam regularizar uma área de 2.000 hectares por R$ 2,7 milhões. Diferentemente das demais propriedades, a fazenda é utilizada como aeródromo. Os responsáveis não foram localizados.
O agronegócio, base de apoio político do governador e potencial candidato à Presidência em 2026, também recebe isenção de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) em 17 cadeias produtivas, avaliadas em R$ 200 milhões.
DEZ ANOS PARA PAGAR A DÍVIDA
As reduções estão previstas em lei estadual de 2022, que criou um programa de regularização de terras devolutas ou presumivelmente devolutas, com registros considerados irregulares.
São áreas públicas sem destinação oficial que acabaram ocupadas por pequenos, médios e grandes fazendeiros.
A norma, sancionada pelo ex-governador Rodrigo Garcia em outubro de 2022, às vésperas da eleição, e prorrogada por Tarcísio até 31 de dezembro 2026, concede até 90% de desconto sobre o valor da terra nua —definido anualmente pelo Instituto de Economia Agrícola (IEA-Apta)— e permite parcelamento em até dez anos.
Na prática, o processo privilegia diretamente os ocupantes das áreas.
VALOR MENOR QUE O DE MERCADO
Desde 2022, 179 processos foram concluídos, envolvendo 73 mil hectares, de acordo com a Fundação Itesp.
A arrecadação prevista é de R$ 187 milhões, ou R$ 2.500 por hectare. No mercado, o valor mínimo é R$ 33,4 mil por hectare (1.236% superior), segundo o Incra.
Com os descontos, o governo espera arrecadar R$ 1,5 bilhão; sem eles, poderia chegar a R$ 20 bilhões — mais que os R$ 14,8 bilhões obtidos com a privatização da Sabesp.
Outros 200 pedidos ainda estão em análise.
Questionado por que utiliza valores da terra nua definidos pelo IAE, e não pelo Incra, que é referência nacional, o governo Tarcísio disse apenas seguir a Lei 17.557/2022, que criou o programa de regularização de terras devolutas.
“Em seu artigo 3º, a lei estipula que o valor da terra nua deve ser calculado com base no valor médio por hectare da respectiva região administrativa, conforme a tabela oficial do Instituto de Economia Agrícola, vinculado à da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios”, informou.
TEM QUE VENDER MESMO, DIZ ALIADO DE TARCÍSIO
Líder do PP na Assembleia Legislativa, o deputado Delegado Olim afirmou que o programa de regularização é bom porque evita gastos desnecessários em processos intermináveis na Justiça.
“E também acho que o Estado não deve ser dono de terra. Tem que vender mesmo e usar o dinheiro arrecadado nas áreas prioritárias”, disse.
O UOL tentou contato com associações do agronegócio, como a SRB (Sociedade Rural Brasileira) e a Datagro, mas seus representantes não quiseram se manifestar sobre o programa.
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GOVERNO LULA E MOVIMENTOS SOCIAIS CRITICAM
O ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, disse que existe uma demanda imensa por assentamentos no Pontal do Paranapanema e que a Constituição determina a realização da reforma agrária em terras devolutas.
“É uma atribuição dos estados também, não só da União. O governo de São Paulo deveria atender às exigências constitucionais”, afirma Teixeira.
Na Alesp, a oposição classifica o programa de Tarcísio como “bolsa-grileiro” e critica as mudanças recentes aprovadas pela base do governador no texto original.
O projeto que agora segue para sanção do governador permite dividir áreas em lotes, como condomínios, abrindo brecha para um número ilimitado de regularizações da mesma terra. A norma original limitava a regularização a 2.500 hectares, conforme o artigo 188 da Constituição.
Também foi aprovada a regularização de áreas em proteção ambiental e a possibilidade de assentados por programas de reforma agrária venderem seus títulos individualmente.
O Pontal do Paranapanema abriga 117 assentamentos ligados ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), com 7.000 famílias em 147 mil hectares. O movimento afirma que a nova legislação “legitima a grilagem” e que a área em negociação poderia beneficiar 20 mil famílias em 300 novos assentamentos de agricultura familiar.
A lei é contestada no STF (Supremo Tribunal Federal) pelo PT desde 2022. A relatora, ministra Cármen Lúcia, ainda não marcou o julgamento.
Fonte.:Folha de S.Paulo