Desde fevereiro de 2022, a Rússia se encontra isolada do Ocidente. Todos os voos entre o país de Vladimir Putin e a Europa ou os Estados Unidos —com a notável exceção da Sérvia— estão suspensos. Outras dificuldades se impõem àqueles que desejam se aventurar fazendo turismo pelo país sob sanções: a antes movimentada fronteira terrestre com a Finlândia nas proximidades de São Petersburgo está fechada sob alegações de que os russos estariam promovendo uma guerra híbrida, facilitado a passagem de imigrantes do Oriente Médio para a União Europeia.
Além disso, o confortável trem Alegro, que fazia o trajeto entre Helsinque e São Petersburgo em apenas três horas e meia, foi enviado para o ferro-velho pelos finlandeses quando eles decidiram romper a parceria que tinham com a RZhD, maior companhia ferroviária russa.
De modo semelhante, as fronteiras entre a Rússia e as repúblicas bálticas, como Estônia e Letônia, estão sob ameaça perene de serem fechadas subitamente. Tal situação faz com que a escolha por conhecer o país dos czares seja bastante limitada. Partindo do Brasil, as opções de companhia aéreas estão reduzidas a Emirates, Qatar, Turkish e, com voos menos regulares, Ethiopian e Royal Air Maroc.
Superada a primeira barreira, o viajante se depara com mais desafios. Desde o início do conflito com a Ucrânia, cartões de crédito ou débito emitidos no exterior não funcionam em território russo. Podem ser utilizados apenas aqueles cartões da bandeira nacional russa, Mir, criada após o primeiro pacote de sanções, em 2014, para limitar o uso de Visa ou Mastercard na península da Crimeia.
Tal situação gera uma série de inconvenientes. Em primeiro lugar, o viajante não conseguirá pagar pela reserva de hotéis online, ou mesmo adquirir passagens internas de trem, ou de avião. Em segundo lugar, é preciso que todo o dinheiro que será utilizado ao longo da viagem seja trazido em espécie —preferencialmente em euro ou dólar— para ser trocado em território russo. Não há como realizar saques ou transferências. É como viajar nos anos 1990, mas sem a antiquada conveniência dos traveller-checks. Os mais jovens não devem nem saber do que se trata, mas o extinto meio de pagamento servia justamente para transportar somas de dinheiro com segurança durante as viagens, em uma época em que cartões de crédito internacionais eram incomuns.
Em minha experiência de trabalho como guia de turismo em tempos de embargo, qual não foi a surpresa, ao receber em Moscou um grupo de brasileiros, descobrir que um dos viajantes havia trazido um total de apenas R$ 200 para uma viagem de duas semanas? O turista desavisado foi salvo apenas pela solidariedade dos outros companheiros de viagem, que se dispuseram a lhe emprestar dinheiro vivo em troca de transferências por Pix nas contas brasileiras.
Por sinal, outro inconveniente é a necessidade de utilizar VPN para acessar diversos aplicativos e sites na internet, inclusive ferramentas de internet banking brasileiros. VPN, como ficou mais conhecido do grande público brasileiro após o bloqueio da rede X, de Elon Musk, pelo ministro Alexandre de Moraes, é um recurso pelo qual o usuário de internet disfarça a sua localização de modo a acessar sites e aplicativos como se estivesse em outro país. Ao contrário do que muitos pensam, esse expediente não apenas é perfeitamente legal na Rússia, como amplamente utilizado.
E se engana quem pensa que essas questões esfriaram após quase três anos de conflito. Em 2025, tornou-se praticamente impossível que estrangeiros adquiram chips para o celular em território russo. Acompanhei um grupo de brasileiros pela rota da Transiberiana nos meses de agosto e setembro deste ano e o processo é recheado de burocracias, incluindo a necessidade de tradução do passaporte para o russo, e, não raro, leva ao menos cinco dias para ser concluído. Apesar da promessa de simplificação do processo de aquisição de chips temporários por meio da implementação do formulário Ru-ID, que será de preenchimento obrigatório para todos os viajantes estrangeiros chegando na Rússia, o sistema ainda não foi implementado devido às falhas em sua plataforma digital.
A guerra com a Ucrânia acaba ainda por moldar algumas das visitas que são realizadas pelos visitantes na Rússia. Para além dos famosos palácios e das igrejas abobadadas, o país sempre foi um destino muito procurado por entusiastas da história militar. Diante do atual cenário político, vários museus do país, especialmente àqueles ligados às Forças Armadas, apresentam exibições temporárias de troféus de guerra: bandeiras e estandartes de unidades de elite ucranianas, como o batalhão Azov, armamento capturados ao longo das operações militares, e até mesmo carcaças de tanques ocidentais como o Leopard e o Adams, que foram expostas ao longo de várias semanas no Parque da Vitória, em Moscou.
São exibições inesperadas como essa, somadas à numerosa propaganda de guerra espalhada pelas cidades, especialmente no interior do país, os únicos sinais que recordam aos visitantes do conflito em andamento. Por mais estranho que possa parecer, a economia russa não aparenta passar por dificuldades; pelo contrário, é notável o dinamismo do presente momento.
Mais importante: o conflito militar propriamente dito não tem, até o presente momento, afetado a experiência daqueles que ousam visitar a Rússia. A vida na maior parte deste país de proporções continentais não se diferencia significativamente em relação ao período anterior à guerra. Às vezes, é possível perder a real dimensão dos riscos diante do noticiário em tempos tão turbulentos. É como o caso do filho de um viajante brasileiro que, alarmado com as notícias sobre um terremoto na Rússia, ligou para o pai em plena madrugada, sem se dar conta de que o desastre natural, na região do Kamtchatka, dificilmente ameaçaria alguém descansando a mais de 6.500 quilômetros de distância, em São Petersburgo.
É desse modo, portanto, que até mesmo aqueles viajantes com maior boa vontade em relação ao país de Putin acabam por se surpreender com o abismo que divide a realidade russa do imaginário que cultivamos sobre a Rússia e seu povo.
Historiador, é guia turístico e sócio da Estrela Vermelha Agência de Viagens
Fonte.:Folha de S.Paulo