Em uma inversão de papéis, a psicanalista paulistana Vera Iaconelli deita no divã, convida seus leitores a entrar em sua casa e conhecer sua família.
Com extrema sinceridade, a especialista na psique humana lança uma narrativa autobiográfica em que conta por que, aos 17 anos, foi buscar ajuda psicológica e como essa experiência repercutiu em sua vida profissional e pessoal.
“Muitos são os caminhos que nos levam a procurar a ajuda de um psicanalista, e todos passam por um certo caldo de cultura que entende que a psicanálise seria uma resposta para o sofrimento”, reflete a autora no livro Análise (clique aqui para comprar), recém-publicado pela Editora Zahar.
Na obra, a terapeuta trata da perda repentina de um irmão ainda jovem, da convivência com um pai agressivo e dependente de álcool e da construção de uma relação repleta de admiração por sua mãe homônima.
A VEJA SAÚDE, Iaconelli reflete sobre suas experiências de vida, violência doméstica, maternidade, envelhecimento e tecnologia.
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Você é autora de best-sellers sobre psicanálise e gênero, e em Análise decide mergulhar nos mesmos temas, mas de forma autobiográfica. O que a levou a optar por esse tipo de narrativa, assumindo a voz em primeira pessoa, que é muitas vezes evitada por terapeutas?
Eu tenho dedicado a minha vida à psicanálise, e cheguei à conclusão de que seria mais honesto da minha parte falar do meu processo em vez de falar do dos meus pacientes — um subterfúgio muito utilizado nesse meio.
Eu vinha de um processo de elaborar meu próprio final de análise e queria dar um destino diferente a alguns resíduos dele. Então, me pareceu oportuno falar de psicanálise ao elaborar um tanto o meu próprio processo pessoal. E isso acabou virando o livro.
Concordo que não é muito comum. Temos um certo mito de que o analista não apresenta sua história pessoal, mas isso acontece só dentro do espaço analítico. Fora dele, somos pessoas como quaisquer outras. E é legítimo que tenhamos uma vida para além do consultório.
Por falar nessa elaboração, há um final ou um estado de resolução para as sessões de análise?
Esse é um grande paradoxo. Você pode parar de frequentar as sessões, voltar depois de um tempo ou fazer a vida inteira. É um processo muito particular. Mas tem um aspecto importante para se reconhecer ao longo de uma análise: o outro não vai responder quem você é — porque essa resposta não existe.
O inconsciente, até o último suspiro da nossa existência, vai produzir percepções que irão nos tornar eternamente desconhecidos de nós mesmos. A gente vai continuar se surpreendendo com quem a gente é, e isso não acaba.
Então, a análise, como um processo de olhar para si mesmo e reconhecer quem você é para além do consciente, não acaba. Porque você sempre vai sonhar, ter lapsos, sintomas… Tudo isso são produções do inconsciente que vão dar mais material para análise. É um processo perene.
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No livro, você narra sua primeira experiência como paciente de uma analista que, como descreve, não era capaz de distanciar-se de problemas e crenças pessoais durante as sessões. Foi uma experiência traumática. O que é esperado de um bom profissional e como encontrá-lo?
Olha, é muito importante que você tenha uma referência, uma pessoa que indique alguém em quem ela também confia. E a formação é superimportante também. Não adianta ter feito um curso de dois anos com certificado e achar que virou analista.
O analista se forma num processo muito longo de preparação. E o que vale é o que acontece quando você está ali, cara a cara com a pessoa.
É fundamental avaliar a qualidade da escuta desse profissional; se ele realmente te deixa falar ou se fica dando opiniões, conselhos, palpites… O psicanalista se abstém de julgar, de aconselhar, de dizer o que você deve fazer. Ele está ali para escutar de forma a fazer com que você pense nas suas próprias questões e escute a si mesmo.
A sessão de análise é sempre surpreendente. O analista vai te falar algo que não é da ordem das ideias dele sobre você, mas sim do que ele foi capaz de ouvir você dizer.
Então, eu acho que é importante ficar menos focado na figura de quem vai te dizer quem você é ou dar respostas fáceis às suas questões, e mais interessado em encontrar a pessoa que vai fazer as perguntas certas.
Você também decidiu compartilhar como conviveu com a violência doméstica na infância e na juventude, devido à dependência do álcool de seu pai. Ao longo de sua carreira, deve ter se deparado com vários relatos similares. Dados recentes estimam que mais de 20 milhões de mulheres sofrem violência no próprio lar. Na sua perspectiva, como podemos avançar no combate a esse problema?
Houve um avanço e um retrocesso. O avanço é que hoje as mulheres aceitam menos as situações de violência: denunciam mais, estão mais atentas, mais exigentes quanto ao tipo de relação que querem ter.
Por outro lado, justamente na medida em que as mulheres avançam na direção do próprio desejo, da autonomia em relação ao corpo, elas também estão sofrendo mais violências, justamente por se posicionarem. As coisas vão escalando à medida que a mulher diz não.
Por isso temos visto o aumento dos feminicídios, principalmente de mulheres negras. É uma questão racial e de classe também. Os avanços da liberdade da mulher vão sendo respondidos com o avanço da violência masculina.
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Como a análise pode ajudar essas mulheres a se recuperarem e superarem o ciclo de violência?
Isso sempre vai fazer parte da nossa história. A questão é: como eu posso viver a partir disso? Eu posso, por exemplo, repetir essa violência exatamente com os meus filhos, o que acontece muito frequentemente. Ou eu posso lutar contra a violência, inclusive publicamente.
Eu posso escolher um homem idêntico àquele que foi violento dentro da minha família e me tornar vítima novamente. Não “zeramos” aquela experiência, mas podemos fazer coisas melhores ou piores a partir dela.
Em muitos casos, mulheres passam por situação de violência enquanto ainda enfrentam os desafios da maternidade. No seu livro Manifesto Antimaternalista, você chama a atenção para a importância da participação de toda a sociedade na criação dos filhos. Quais princípios e medidas devem ser cultivados para mudar esse cenário?
Temos um conjunto de ações para enfrentar isso. Não há nada que vá se resolver de forma única. Por um lado, há a conscientização das mulheres de que o que elas estão oferecendo é muito mais do que os homens estão contribuindo. Isso é exploração.
E é preciso estar consciente de que isso também deteriora a relação delas com os filhos, porque é uma relação sempre desgastada, exaustiva.
Às vezes, as crianças preferem estar com o pai, porque o pai está sempre livre, leve e solto, e a mãe está sempre aflita, o que é absolutamente injusto. Colocar o homem na conta toda vez que falamos de cuidado é necessário. Na verdade, a mudança de mentalidade deve ser acompanhada de uma série de medidas.

Que medidas são essas?
Há muitas coisas a serem feitas. E todas elas têm que ser feitas juntas. Precisamos dialogar com as empresas para que as mulheres não sejam demitidas, para que elas ganhem tanto quanto os homens — uma vez que elas têm essa função social gigantesca, que é o papel físico na reprodução e nos cuidados.
Agora estamos discutindo o aumento da licença parental para os homens. Esse é um direito que protege as famílias, pois permite que os homens tenham um papel mais ativo nos cuidados com a criança, diminuindo a sobrecarga que cai sobre os ombros das mães.
Então, temos uma miríade de ações em vários campos. A sociedade toda tem que ser mobilizada para isso.
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E como essas diferentes violências acabam minando a saúde da mulher?
Para as mulheres que gestam e parem seus filhos, a gente tem toda a experiência do que chamamos de ciclo gravídico-puerperal, que por si só gera um grande risco à saúde mental devido à sobrecarga dessa situação. E, então, tão logo quanto o bebê nasce, boa parte das mulheres passa a se sentir desamparada.
Há um desamparo social muito grande nessa fase, principalmente para mulheres de classes sociais mais baixas. Elas vivenciam uma experiência no corpo, uma experiência subjetiva e social muito bruta, e uma hiper-responsabilização pelo indivíduo que acabaram de dar à luz.
Como isso se manifesta tanto psicológica quanto fisicamente?
Todas essas questões vão desencadear sobrecarga psíquica. Há um excesso de demandas para nós, mulheres, darmos conta de organizar a vida. A partir disso é que vem o adoecimento.
As depressões se tornam mais frequentes, mas não só elas. Crises de ansiedade, angústia, pânico… Aumentam também os riscos de doenças psicossomáticas graves.
E, mesmo apresentando diversos sintomas e formas de deterioração da saúde, as mulheres não param de cuidar dos seus filhos. Isso é uma loucura, não? Por que não tem ninguém para rendê-las?
Outra fase da vida da mulher que ganha atenção é a menopausa. Como ela afeta o estado psíquico da mulher? Você quer compartilhar um pouco da sua própria experiência?
A gente vive numa cultura que coloca a mulher numa posição em que ela só tem valor quando é jovem, bonita e fértil. Quando nossos hormônios começam a minguar, percebemos muito rapidamente todas as mudanças no nosso corpo e, mais recentemente, começamos a falar mais abertamente sobre isso, compartilhar com outras mulheres e procurar especialistas.
A perda da juventude para a mulher tem um custo diferente do que tem para o homem. Há muita coisa para ser elaborada nessa época, que é bastante particular. No meu caso, eu realmente fiquei muito decepcionada com o meu corpo, porque eu me achava superativa: acordava às 5 da manhã, fazia ginástica todo dia, me cuidava, tomava sol.
Fazia um monte de coisas que poderiam ajudar a retardar o envelhecimento. Mas a idade havia chegado e eu não me conformava por não ter mais a mesma energia. Estava decepcionada comigo mesma e desenvolvi depressão. Mas contei com o suporte da minha psiquiatra e da minha analista.
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Ainda há muito estigma sobre procurar ajuda psicológica, não?
Hoje, os psicanalistas trabalham muito próximos dos psiquiatras. Agora, a medicação, sem psicoterapia, faz com que você tire um sintoma, mas não lide com a causa do problema. Elas devem caminhar juntas, cada uma com a sua função no tratamento de transtornos mentais.
Esse equilíbrio também ajuda a evitar a dependência de medicamentos. Entre mulheres, são comuns casos de depressão que começaram no pós-parto. Elas são medicadas em um dado momento, não são encaminhadas para psicoterapia e seguem tomando o remédio até que ele não faz mais efeito.
Só que seguem sofrendo porque não conseguiram identificar ou tratar a causa dessa depressão. Mas há dois lados nessa história. Um é que ainda existe preconceito, tanto para se tratar com remédio quanto com psicoterapia, e outro é o da hipermedicalização.
Muitos não recebem o diagnóstico correto, mas conseguem formas de se automedicarem — e isso traz mais riscos do que benefícios à saúde. Vivemos essas duas mazelas.
Depois de concluir essa fase da vida, você tem uma nova visão sobre o envelhecimento?
Fiz 60 anos em março e agora vejo a coisa com outros olhos. Não dá para ficar eternamente lamentando a menopausa. Essa fase, para mim, acabou. Tenho uma parte da minha vida pela frente — mas não toda a vida pela frente. Me sinto muito diferente, me sinto muito… consciente da velhice.
Esse inclusive será o tema do novo livro que estou escrevendo. Já sou uma mulher de idade que estaciona em vaga de idoso. Sou uma velha, e isso não é xingamento — pelo menos não é para mim.
E não sou anacrônica, consigo acompanhar as tendências do mundo ao meu redor. Tento ser uma pessoa à altura do meu tempo, estou batalhando por isso. É algo que tem me motivado bastante.
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Falando em tendências, a inteligência artificial está cada vez mais presente no nosso dia a dia. Há até quem humanize a ferramenta, usando-a para pedir conselhos, contar confidências ou criar fantasias. Como você enxerga essa relação que estamos criando com a tecnologia?
Eu admiro tudo o que a humanidade é capaz de produzir, inclusive a inteligência artificial, que é uma ferramenta genial. Mas tenho ressalvas acerca de como ela tem sido aplicada. Nós adoraríamos que ela cuidasse de várias tarefas entediantes da nossa rotina, mas não é isso o que estamos vendo.
Nós vemos que a virtualidade criou um isolamento muito grande entre as pessoas, que foi reforçado também pelo período que vivemos em pandemia.
As pessoas estão muito sós e paranoicas, sempre com medo umas das outras. E, por outro lado, a inteligência artificial oferece uma emulação de uma relação humana, que, na verdade, é um curto-circuito narcísico em que o bot apenas responde ao que a pessoa quer ouvir.
A ferramenta vai sacando o que o usuário quer e dá respostas que reforçam seu gosto. É um reforço amoroso que não traz amor nenhum e críticas que também não evoluem em nada, porque ele não te apresenta o contraditório, não te faz refletir.
É um empobrecimento e um achatamento da subjetividade, e um incremento da solidão. A IA está sempre lá, não te deixa no vácuo. Só que precisamos encontrar outras formas de lidar com esse vazio.

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Nesta era de vida entre telas, temos visto o crescimento de vícios, inclusive nos jogos de azar virtuais. Eles também são reflexo dessa dificuldade de lidar com faltas e frustrações?
Sim, e é preciso que essas pessoas reconheçam que há algo de errado. Por mais que pareça óbvio para quem não vivencia uma certa adição, para quem está imerso isso pode parecer uma situação normal. E, quando se trata de um adoecimento por compulsão, não podemos moralizar e dizer “Ah, se tiver força de vontade, ela consegue”.
Não, não é só força de vontade. A gente está falando de um cérebro que está capturado por certos estímulos e recompensas e que vai viver um momento de privação doloroso quando tiver que lidar com a cessação daquele hábito.
É preciso procurar ajuda. Isso é duro de admitir, porque você vai ter que aceitar que não está correspondendo à sua própria expectativa, que você não é quem imaginava ser.
O tratamento, na maioria das vezes, inclui encontros com outras pessoas em recuperação, que vivenciaram os mesmos sufocos que você pode ter vivenciado. Isso é importante para não se sentir só. E é preciso uma vigilância constante, porque sempre existe o risco de cair em uma nova compulsão.
Para fechar: dá para mudar a humanidade?
Tem uma mensagem que a psicanálise carrega que é, parafraseando Raul Seixas, “somos metamorfoses ambulantes”. Não sabemos muito bem quem somos e nunca vamos saber.
Mesmo assim, buscamos uma identidade, o pertencimento a um grupo, algo para nos sentirmos menos sós e responder à pergunta de 1 milhão de dólares: quem somos? É algo a que nunca conseguiremos responder, mas é possível trabalhar essas e outras aflições na análise.
Análise, de Vera Iaconelli
Análise, de Vera Iaconelli
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Fonte.:Saúde Abril