Em Paris, Roma, Lisboa ou Barcelona, tudo começa com um voo low-cost, acaba com um ímã de geladeira, e no meio há sempre uma viagem de tuk-tuk com música turbofolk dos balcãs.
Os voos low-cost são o grande paradoxo do século 21: democratizaram as férias no estrangeiro e, ao mesmo tempo, destruíram a própria razão para lá ir. Levaram estudantes a beber cerveja em Praga, famílias a comer pizza em Roma, despedidas de solteiro a gritar em Budapeste às quatro da manhã. Trouxeram contato entre povos, sim, mas também entre alto-falantes aos bares e vizinhos infelizes.
A experiência do homo turisticus começa no aeroporto da cidade que não fica na cidade. É a peregrinação low-cost. Pousar em Paris Beauvais (a 104 km da capital francesa), que de Paris só tem o nome e a promessa, seguido de um ônibus de duas horas que custa mais do que o próprio voo. Ou Frankfurt Hahn (a 120 km do centro da cidade), que está para Frankfurt como Elvas está para Lisboa. O resultado deste processo é uma uniformização cultural e centros históricos transformados em parques temáticos.
As lojas de comércio local foram substituídas por museus que não são museus, como o Museu das Ilusões de Praga, onde a única ilusão é o dinheiro saindo da conta bancária. Centenas de lojas de souvenirs vendem exatamente os mesmos produtos, mercearias de bairro passaram a vender produtos duvidosos feitos (supostamente) à base de cannabis e as clássicas lojas com um pirata na vitrine que vendem balas em barris como se fosse tradição no continente inteiro.
O trânsito foi entupido, ora por réplicas de carros antigos com motores elétricos, ora por tuk-tuks animados com música popular. A música de rua passou a ser sempre o “Imagine” do John Lennon entoada à exaustão, como se a paz mundial dependesse de um viajante de rabo de cavalo. E, para desenjoar, o ocasional hit do Coldplay ou do Ed Sheeran.
“O turismo europeu não é mau por existir, mas por existir sempre da mesma maneira”
A certa altura, já não importa se estamos em Milão ou Cracóvia —a paisagem no centro histórico é idêntica. Há sempre um pub irlandês cheio de turistas britânicos (mais raros são os irlandeses) com camisas de clubes obscuros das divisões inferiores, bebendo Guinness servida por um croata com mestrado em engenharia. E um museu de figuras de cera, porque umas férias na Europa não ficam completas sem uma fotografia ao lado de uma estátua de cera de um ator ou líder político qualquer.
O Airbnb foi o melhor amigo e pior inimigo destas cidades. Melhor, porque trouxe turistas que deixam dinheiro. Pior porque expulsou quem lá morava. Hoje, viver num centro histórico é um luxo reservado a herdeiros ou a influencers de estilo de vida. Os outros ficam nos subúrbios, vendo sua antiga rua no Instagram de um casal sueco.
Talvez a solução seja um plano europeu de desconcentração turística. Starbucks numa aldeia remota da Bulgária, com máquina de café a lenha. Tuk-tuks no círculo polar ártico, conduzidos por renas sindicalizadas e lojas de souvenirs em Carrazeda de Ansiães [vila portuguesa na região do Douro], vendendo camisetas “I Love Carrazeda” com direito a foto com o presidente da junta. O turismo europeu não é mau por existir, mas por existir sempre da mesma maneira.
A aventura morreu, substituída pela curadoria algorítmica de experiências imperdíveis no TripAdvisor. A surpresa já não vem de nos perdermos numa rua, mas de encontrar um restaurante sem menu em QR code.
No fundo, o homo turisticus não viaja, migra temporariamente para uma versão condensada de casa, com a mesma comida, música e lojas, só que com monumentos históricos como pano de fundo. E talvez seja isto que mais dói: atravessar fronteiras para acabar num lugar onde já estivemos mil vezes, mesmo que nunca tenhamos estado lá.
Fonte.:Folha de S.Paulo