4:05 PM
18 de outubro de 2025

Vida e resiliência após a catástrofe das enchentes no Rio Grande do Sul

Vida e resiliência após a catástrofe das enchentes no Rio Grande do Sul

PUBLICIDADE



E se, da noite para o dia, perdêssemos quase toda a nossa história e acordássemos em um presente de extrema vulnerabilidade? Foi o que milhões de gaúchos viveram em maio de 2024. As enchentes mais severas da história do Rio Grande do Sul atingiram cerca de 90% do território: 478 dos 497 municípios foram impactados, 2,4 milhões de pessoas foram afetadas, mais de 600 mil ficaram sem casa, 184 vidas se perderam e, por semanas, houve registros de desaparecidos.

Chamamos de catástrofe o evento natural ou potencializado por ações humanas que excede nossa capacidade de resposta, amplia riscos sociais e deixa um rastro de perdas humanas, materiais e ambientais.

Não foi “apenas” a natureza. Vimos a combinação de extremos climáticos com fatores de origem humana — ocupação urbana sem planejamento, manejo inadequado do solo, infraestrutura insuficiente e falhas de prevenção.

Em poucas horas, faltaram água potável e energia em grandes áreas, inclusive na capital. O Inmet emitiu alerta vermelho em 29 de abril, e, em 1º de maio, foi decretada a calamidade. Em dois dias, a água levou histórias de uma vida inteira. A partir daí, nos deparamos com um mosaico de necessidades: abrigos lotados, vias interrompidas, serviços de saúde paralisados ou sobrecarregados e crianças, idosos e doentes precisando de ajuda.

O que fazer em meio ao caos?

Quando a vida vira emergência, a resposta precisa ser integral — do corpo à mente. A literatura científica é clara: desastres, especialmente enchentes, deixam marcas mentais duradouras.

Estudos apontam que até um terço dos afetados pode apresentar sintomas de depressão e ansiedade. A estimativa de transtorno de estresse pós-traumático beira os 30% nas populações expostas. O risco cresce com perda de moradia, deslocamento forçado e interrupção de serviços essenciais.

Continua após a publicidade

Água, alimento e abrigo salvam hoje — apoio psicológico salva amanhã. Diante desse cenário, nós, como organização sem fins lucrativos encabeçada pela nossa frente social, o Instituto Moinhos Social, do Hospital Moinhos de Vento, nos mobilizamos para oferecer uma resposta rápida, integrada e humana à catástrofe.

Desde o primeiro dia, pilotamos o suporte à comunidade até o retorno das famílias aos lares. Atuamos com equipes próprias e voluntárias em cinco eixos — Educação, Saúde, Assistência Social, Cultura e Esporte —, viabilizados por recursos do hospital, fomento nacional e internacional, leis de incentivo e captação ativa.

Imediatamente, ativamos uma rede de doações, com pontos de coleta e distribuição. Em cinco dias, instalamos unidades de atendimento nos abrigos, com médicos, enfermeiros e assistentes sociais, além de postos avançados para primeiros socorros. Oferecemos um serviço de telemedicina para amparar os atingidos e as equipes de resgate.

Para dar eficiência e justiça à ajuda, aplicamos uma metodologia própria de mapeamento de vulnerabilidade social, priorizando os casos mais críticos. No total, recebemos 2 milhões de reais — além dos itens doados — e convertemos os recursos em vouchers para materiais de construção, mobília e eletrodomésticos, viabilizando a volta ao lar de mais de mil famílias.

Continua após a publicidade

Também aplicamos o princípio do cuidar de quem cuida, contatando 1 185 funcionários do hospital, realizando 524 atendimentos, garantindo transporte e ofertando leitos a profissionais que não conseguiam retornar aos seus lares. Com um canal de doação e aporte do hospital, criamos o programa Juntos para Recomeçar, destinando mais de 1,3 milhão de reais em crédito a cerca de 400 colaboradores.

Nesse contexto, a gestão da crise foi decisiva. Ativamos nosso comitê institucional, tomamos decisões ágeis e mantivemos a assistência com segurança. Trabalhamos por mais de duas semanas em regime de contingência de água: caminhões-pipa garantiram o mínimo necessário, enquanto, com apoio municipal, tratávamos a água de um poço artesiano.

No período, suspendemos cirurgias e procedimentos eletivos, priorizando urgências e casos em que o tempo é decisivo. A esterilização de materiais foi feita por parceiros. Na unidade de diálise, ajustamos as rotinas — sessões de três horas e, quando necessário, menos sessões por semana — com orientação das equipes médicas e adesão a protocolos para garantir a continuidade do cuidado.

Além disso, professores e alunos de enfermagem da nossa faculdade atuaram à beira do leito, sob supervisão, reforçando as equipes. E recebemos, com segurança, pacientes críticos — de bebês a adultos — de outra instituição que precisou ser evacuada.

Continua após a publicidade

Como transparência é fundamental, nesse momento de aperto compartilhamos boletins diários com prazos, diretrizes e orientações ao nosso público.

Lições e legados

Tamanha experiência propiciou que, um ano depois, disponibilizássemos um guia para ajudar em situações de desastre, aplicável em outras regiões. E, cientes do tremendo impacto emocional na comunidade, ainda lançamos, em parceria com o Ministério da Saúde, o projeto Recomeçar, com triagem, acompanhamento e reabilitação mental para os mais atingidos.

Aprendemos, assim, que a resiliência se constrói antes, durante e depois. Antes, com gestão de riscos e cultura de prevenção. Durante, com governança, dados, comunicação clara e cuidado centrado na pessoa — do corpo à mente. Depois, com avaliação honesta do que funcionou, do que falhou e do que precisa mudar em políticas públicas, infraestrutura e educação.

Em desastres, cada decisão tem custo humano; cada gesto coordenado salva vidas. A catástrofe de 2024 deixará cicatrizes visíveis e invisíveis. Cabe a todos nós — poder público, setor privado, academia, imprensa e sociedade civil — transformar dor em compromisso e experiência em melhoria contínua.

Continua após a publicidade

Cuidar de pessoas é reconhecer que saúde, moradia, trabalho, vínculo comunitário e bem-estar mental caminham juntos. Quando o Rio Grande do Sul precisou, o cuidado coletivo apareceu. Que ele permaneça — preparado, justo e humano — para que nenhuma família esteja sozinha se as águas insistirem em voltar, mesmo torcendo para que isso nunca mais aconteça.

* Melina Schuch é é superintendente de Estratégia e Mercado do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre

Compartilhe essa matéria via:



Fonte.:Saúde Abril

Leia mais

Rolar para cima