Pelo menos 1.247 pessoas foram assassinadas e outras 710 ficaram feridas no Haiti de 1º de julho a 30 de setembro de 2025, segundo dados recentes das Nações Unidas. O cenário de violência é agravado por uma relação fluida e sobreposta entre gangues, grupos de autodefesa e forças estatais no país. Além disso, em setembro, 1,4 milhão de haitianos estavam deslocados de suas casas.
Segundo o relatório da ONU, 30% das mortes foram atribuídas à violência de gangues, 9% à atuação de grupos de autodefesa, e 61% às operações das forças de segurança.
A crise econômica, a insatisfação política, o vácuo de poder e a baixa capacidade de governança ampliaram a influência das facções criminosas —fenômeno que se aprofundou após o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021.
Trata-se de um círculo vicioso: as gangues haitianas surgem sobretudo a partir de grupos comunitários de segurança, formados para suprir a ausência do Estado —enfraquecido, por sua vez, por esses centros de poder paralelos.
“O narcotráfico não é central no modelo de financiamento desses grupos”, afirma o pesquisador Pedro Braum, da ONG Viva Rio, que tem atuação em Porto Príncipe. “Sua principal fonte de recursos é o controle territorial, a extorsão e os resgates por sequestros.”
Cercanías
A newsletter da Folha sobre América Latina, editada pela historiadora e jornalista Sylvia Colombo
Chamadas de bases ou brigadas, essas estruturas surgem quando moradores se organizam para garantir a proteção do bairro. Wesley Belotte, líder de uma base comunitária da cidade de Milot, no norte do país, afirmou à Folha que as associações locais promovem eventos recreativos, assumem pautas políticas e pressionam o poder público por demandas que incluem, por exemplo, o fornecimento de energia elétrica.
Criadas inicialmente para autodefesa, essas organizações também desempenham funções culturais, políticas e de reivindicação territorial —e podem, com o tempo, transformar-se na semente de novas gangues.
“A ordem pública foi privatizada pelas gangues”, afirma o sociólogo Jean Casimir, da Universidade Estatal do Haiti. Na ausência de um Estado funcional, as brigadas ganharam apoio de autoridades locais e de parte da população, frustrada com um sistema judicial paralisado.
A situação se deteriorou ainda mais a partir de 2024, quando as gangues obrigaram o então primeiro-ministro, Ariel Henry, a renunciar. O país, que não realiza eleições desde 2016, passou a ser governado por um Conselho Presidencial de Transição, incapaz de conter a escalada da violência.
Inicialmente dispersas, as gangues passaram a se articular em plataformas e formaram a coalizão Viv Ansanm, que enfrenta as forças de segurança e faz ataques em larga escala.
Em resposta ao agravamento da crise, o Conselho de Segurança da ONU aprovou, no fim de setembro, uma resolução que reforça a Missão Multinacional de Segurança (MMAS) —criada em 2023 e liderada pelo Quênia—, transformando-a em uma força mais robusta para tentar frear o avanço dos grupos paramilitares.
Em 2024, as Nações Unidas já haviam denunciado pessoas acusadas de crimes graves contra centenas de crianças: 213 foram assassinadas, 138 ficaram feridas, 566 foram vítimas de violência sexual, e 302 foram recrutadas por gangues.
Entre a população deslocada, o número de crianças que precisou sair de casa quase dobrou no último ano, chegando a 680 mil, segundo relatório da Unicef divulgado em outubro. São menores de idade que podem estar sozinhos e buscam refúgio em edifícios abandonados, escolas ou abrigos improvisados sem água potável nem saneamento.
As condições são propícias para a propagação de doenças, em particular a cólera —que chegou ao país em 2010 por meio de soldados da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah).
Para o professor da Unicamp Omar Thomaz, a atual crise de segurança no Haiti é outro importante legado dessa operação, que durou de 2004 a 2017 e foi liderada pelo Brasil.
“A parte civil da missão, encabeçada pelo Chile, contribuiu para fragilizar ainda mais instituições já debilitadas, enquanto o componente militar —sob comando do Brasil e voltado ao combate às gangues— acabou produzindo o efeito de empoderar esses grupos criminosos.”
Lá Fora
Receba no seu email uma seleção semanal com o que de mais importante aconteceu no mundo
“O Haiti foi inserido na rede internacional de tráfico de armas após a Minustah, o que mudou a configuração da violência no país” afirma Thomaz. Apesar de ser a maior operação militar brasileira desde a Guerra do Paraguai, pouco se sabe sobre atuação das Forças Armadas no território haitiano. Não houve responsabilização por eventuais crimes cometidos ou inquérito sobre práticas durante a intervenção.
Para Pedro Braum, a frustração social eclodiu em 2018, pouco depois da retirada da Minustah, quando o governo aumentou em 50% o preço dos combustíveis. O reajuste detonou o movimento “Pays Lock” (“país fechado”), canalizando um descontentamento generalizado que abriu espaço para a expansão dos grupos armados.
Fonte.:Folha de S.Paulo


