DANIELE MADUREIRA
MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – Foi no chão de fábrica de uma fornecedora de peças da Honda que o manauara Diego Francisco Souza, 40, decidiu o que fazer da vida. Aos 18, ele trabalhava como operador de máquinas da Scorpios da Amazônia: sua função era montar peças em dispositivos de solda, que seriam soldados na sequência por robôs. Ficou impressionado com o mundo da tecnologia e da inovação. Passou a usar o horário de almoço para acompanhar os técnicos da área e entender como tudo funcionava.
Aprendeu tão bem só observando, que numa manhã de sábado, quando a máquina em que trabalhava apresentou falha e o responsável técnico estava fora, foi ele quem consertou sozinho o equipamento.
Pouco depois, foi transferido para a manutenção e mergulhou fundo no universo da automação –área que desenha sistemas para automatizar processos, aumentando a eficiência da indústria a partir do uso de robôs. Foi promovido a eletricista, técnico em robótica, analista de processos e coordenador de engenharia. E deixou a Zona Franca.
“Em Manaus, infelizmente, os salários ainda são inferiores aos de outras regiões do Brasil”, diz Souza, que saiu da cidade porque a empresa não podia ajustar sua remuneração ao nível de responsabilidade que ele havia assumido. “Cheguei a ganhar mais do que o próprio gerente da unidade, o que gerou um impasse”, diz ele, que acabou transferido para uma unidade em Camaçari (BA), recebendo 54% mais.
Hoje o especialista mora com a família em Kansas City, nos Estados Unidos, e tem a própria empresa de automação industrial, que atende uma grande montadora. “Minha história é a prova de que a Zona Franca forma talentos capazes de competirem em nível global”, diz. “Mas a limitação salarial faz com que muitos profissionais qualificados busquem oportunidades em outros estados ou até fora do país. Isso gera uma evasão de talentos, o que poderia ser evitado com uma política de valorização mais justa.”
Grandes empresas da Zona Franca de Manaus têm sentido na pele essa debandada. Para estarem inseridas no universo da “indústria 4.0” –baseada na integração de tecnologias como internet das coisas, inteligência artificial e big data aos processos industriais–, elas demandam técnicos e engenheiros de automação. Mas esta mão de obra está em falta no polo industrial.
“Há um gap de especialistas em automação, algo que já deveríamos ter resolvido pelo tipo de indústria que temos aqui”, diz Hamzah Nasser, diretor da fábrica da Electrolux em Manaus, ressaltando que boa parte do polo local já usa robotização. “Muitos desses engenheiros estão fora da região e precisamos trazê-los para cá.”
É o que faz, por exemplo, a Recofarma, uma das 19 fábricas da multinacional Coca-Cola no mundo destinadas exclusivamente à produção de concentrados para refrigerantes e outras bebidas gaseificadas. A empresa precisou “importar” especialistas em automação de São Paulo para trabalhar em Manaus, por falta de mão de obra disponível. Para convencer os profissionais a trocarem a capital paulista pela amazonense, paga bônus.
Com 30 anos de trabalho no polo industrial, Gerson Nascimento, 57, supervisor de saúde, segurança e meio ambiente da Electrolux, diz que o polo costumava trazer muitos engenheiros de fora, mas agora começa a exportar especialistas. Para ele, existem outros fatores, para além da remuneração, que fazem com que os profissionais deixem Manaus.
“Nem todos querem ficar, principalmente as novas gerações, que desejam que as coisas aconteçam muito rápido”, diz. Mas em indústria não é assim, ele pondera. “Existe todo um processo para conseguir uma promoção, mas eles querem queimar etapas para conseguirem uma ascensão mais rápida.”
Jean Marc Hamon, 59, diretor da fábrica da Bic em Manaus, concorda. “Os mais jovens têm necessidade de autonomia muito maior do que os profissionais antigos. Se a gente trabalhar da mesma forma que trabalhava há dez ou 15 anos, eles não ficam, em especial quem trabalha com as novas tecnologias”, diz o francês, que há 33 anos mora na capital amazonense. “É preciso oferecer uma carreira internacional para eles ficarem na empresa e, talvez, voltarem no futuro, agregando valor à operação.”
Para se ajustar às novas gerações, a multinacional francesa implantou o programa Bic Up!, de estímulo à sugestão de inovações. As ideias para melhorar processos internos podem vir de todos os funcionários, com rápida implementação, sem burocracias. Só no ano passado, 20 mil ideias foram aprovadas, depois de passarem pela análise de 91 gestores. “Não é preciso um diretor para aprovar ideias, perder tempo em tomadas de decisão”, diz Hamon. “Os jovens querem ser mais participativos, terem autonomia.”
Como resultado, a Bic tem baixo índice de rotatividade, cerca de 1% ao ano. É o que explica o fato de a maior parte dos seus 800 funcionários em Manaus terem entre 30 e 49 anos, diferentemente da média local, concentrada em profissionais mais jovens. “Quem entra, não quer sair”, diz Hamon, destacando que a empresa recebeu o selo GPTW (Great Place to Work), como uma das melhores do país para se trabalhar.
Mas essa não é a regra no polo industrial. A reportagem apurou que no setor de eletroeletrônicos, empresas como a Samsung costumam demitir logo após o fim do ano, passado o pico de demanda. Procurada pela reportagem, a multinacional coreana disse em nota que “segue rigorosamente a legislação trabalhista brasileira”.
SEM SEGURO INSALUBRIDADE NA YAMAHA
Na fábrica da Bic, a temperatura varia entre 23ºC e 25ºC. Trata-se de um diferencial importante em Manaus, onde o termômetro chega a 31ºC em pleno outono e, dentro da fábrica, pode superar os 40ºC.
“Não ter ar-condicionado em Manaus é loucura”, diz Hamon. Em 2016, a empresa implantou o sistema HVAC, que controla a temperatura, a umidade e a qualidade do ar dentro dos espaços. Foram investidos 1,5 milhão de euros (cerca de R$ 10 milhões em valores atuais). Nos primeiros cinco anos, houve a troca de equipamentos. “Economizamos 500 mil euros logo no primeiro ano, o consumo de energia foi reduzido em 50%”, diz o executivo, que destaca ainda a baixa frequência de manutenção do sistema e o consumo zero de gás refrigerante (fluido que absorve calor e depois o transfere para o ambiente externo).
“A pior coisa de trabalhar em Manaus é o calor”, diz o gerente de manufatura da Yamaha, Jackson Mata, 50. Natural de Itapiranga, a 339 quilômetros de Manaus, filho de extrativistas, descendente de indígenas, ele veio para a capital aos 12 anos, para estudar. “Sempre quis trabalhar na indústria”, diz Mata, há 32 anos na Zona Franca. “O polo é a força motriz da economia do nosso estado. Mas também tem uma riqueza cultural muito grande, com gente de várias partes do Brasil e do mundo”, afirma. As duas filhas dele, porém, decidiram ficar longe das fábricas: Tagna, 30, é psicóloga, e Lyanne, 21, estuda odontologia.
Nos últimos anos, segundo Mata, a Yamanha vem implantando iniciativas para reduzir as altas temperaturas dentro da fábrica, como a derrubada de paredes para maior circulação de ar, isolamento térmico nos telhados, instalação de exautores, e adoção de uniformes com tecido nanotecnológico para ampliar o conforto térmico. Só em Manaus, a Yamaha soma mais de 4.000 funcionários. O Brasil é o maior mercado da montadora japonesa, depois dos países asiáticos.
“Hoje não pagamos seguro insalubridade para ninguém”, diz Tiago Muzilli, coordenador de relações institucionais da Yamaha em Manaus. “As condições são salubres.”
No chão de fábrica em Manaus, o salário gira em torno de R$ 2.000 ao mês. Relatório do Cieam (Centro da Indústria do Estado do Amazonas), com base em dados do Ministério do Trabalho e Emprego, aponta que na capital amazonense a indústria da transformação responde pelo quarto maior salário médio mensal (R$ 3.420), depois de extração mineral (R$ 19.272, por conta da operação de petróleo e gás da Petrobras em Urucu), administração pública (R$ 6.063) e serviços de utilidade pública (R$ 4.983).
“O salário médio oferecido na Zona Franca é o quarto maior do país, depois de Rio, São Paulo e Rio Grande do Sul”, diz Lúcio Flávio Morais de Oliveira, presidente executivo do Cieam, chamando a atenção para o fato de o estado estar à frente de regiões com polos importantes, como Santa Catarina e Paraná.
Como diferencial da região, Oliveira cita o fato de instituições de ensino serem bancadas pela indústria. A UEA (Universidade Estadual do Amazonas) é mantida integralmente pelos fabricantes da Zona Franca de Manaus, assim como projetos de pesquisa e desenvolvimento industrial da Ufam (Universidade Federal do Amazonas). Ao ano, são destinados entre R$ 800 milhões e R$ 900 milhões ao ano para as universidades. “Trata-se de uma contrapartida aos incentivos fiscais oferecidos na região”, diz ele.
Fabio Plácido Santos, pró-reitor de ensino de graduação da UEA, diz que o interesse por automação tem aumentado. “Entre 2015 e 2025, foram formados 127 estudantes em Engenharia de Controle e Automação”, diz ele. Só este ano, 222 alunos estão fazendo o curso, que tem duração de cinco anos.
Segundo Nassar, da Electrolux, a companhia tem buscado um diálogo direto com as instituições locais de ensino para reforçar a formação de especialistas em automação. “É importante que esse profissional esteja no polo, onde está instalado um dos centros de pesquisa da companhia, para que as inovações sejam de fato integradas ao processo produtivo”, diz. “Da maneira como está hoje, nós acabamos sendo o trampolim de muitos talentos para fora de Manaus.”
A repórter viajou a convite do CIEAM (Centro da Indústria do Estado do Amazonas)
Fonte Noticias ao Minuto