Entrevistas, artigos e palestras de Alexandre de Moraes até 2018 evidenciam diversas mudanças de posicionamento entre o jurista de antigamente e o ministro que atua hoje no Supremo Tribunal Federal (STF). “O Moraes de 2018 seguia e aplicava rigorosamente as normas constitucionais”, aponta a mestre em direito público Vera Chemim, ao citar que o magistrado enfatizava direitos fundamentais, individuais e coletivos, como liberdade e o pluralismo de ideias.
“Exatamente o contrário do que faz hoje”, verifica a especialista, ao citar, como exemplo, a imposição, na última semana, de medidas cautelares ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que não foi condenado e nem demonstrou risco de fuga. “Isso fere de morte a cláusula pétrea que constitui o Estado Democrático de Direito, impedindo que o ex-presidente possa se comunicar e, pior, restringindo a liberdade de imprensa e de informação”, continua.
Para o advogado constitucionalista André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, ações como essa contrariam a defesa que o próprio ministro fazia em relação à liberdade. Segundo ele, Moraes afirmava até 2018 que pessoas que se ofendem não têm direito de cercear a opinião dos outros. No entanto, ele aponta que o ministro passou a agir exatamente como criticava, tomando decisões opostas à Constituição Federal (CF) e ao Estado Democrático de Direito.
Segundo a consultora jurídica Kátia Magalhães, a partir de 2019, com o inquérito das fake news, o magistrado deixou de interpretar a Constituição para se sobrepor à Carta Magna, ferindo outro entendimento que deixava claro dois anos antes: o de que “há limites para a interpretação [judicial]”.
A frase foi dita por Moraes em 11 de dezembro de 2017, oito meses após se tornar ministro do STF, e o vídeo está disponibilizado no canal do YouTube da Fundação Fernando Henrique Cardoso (Fundação FHC) com falas que contrariam ações atuais do magistrado e que alertam para comportamentos incomuns de juízes.
“Uma coisa é a interpretação, outra coisa são as excentricidades judiciais”, disse Moraes na palestra de 2017. “Traduzo isso pelo ‘eu acho que ele é culpado’”, continuou o ministro, que sete anos depois prenderia o ex-assessor Filipe Martins devido a uma viagem que, comprovadamente, nunca existiu. “Esse é o caso mais emblemático da imposição de sanções sem prova de conduta ilícita”, ressalta Kátia.
Os especialistas em Direito Constitucional consultados pela Gazeta do Povo comentaram outras frases de Alexandre de Moraes que confrontam o ministro nos dias de hoje. Veja nos tópicos abaixo:
1. “Lembremo-nos que, nos Estados totalitários no século passado – comunismo, fascismo e nazismo –, as liberdades de expressão, comunicação e imprensa foram suprimidas” (Moraes, 2018)
Durante julgamento do STF, em junho de 2018, a respeito da proibição de emissoras de rádio e TV exibirem críticas ou sátiras sobre candidatos (ADI 4451/DF), Moraes alertou para o fato de que as liberdades de expressão, comunicação e imprensa haviam sido “suprimidas” em regimes totalitários, como comunismo, fascismo e nazismo. Com isso, apontou que a restrição de discursos, mesmo controversos, criariam precedentes perigosos para a Democracia (trecho abaixo).

“Esta [a liberdade de expressão] constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático”, escreveu o magistrado.
No entanto, de acordo com André Marsiglia, o ministro parece ter mudado de ideia a partir do ano seguinte, quando as redes sociais se tornaram local de debate político e críticas a autoridades. “Ele passou, então, a entender tudo como ataque, em oposição ao que acreditava e que é a interpretação correta da CF”, explica o especialista em liberdade de expressão.
2. “Quem não quer ser criticado, quem não quer ser satirizado, fique em casa, não seja candidato, não se ofereça ao público” (Moraes, 2018)
De acordo com Marsiglia, a explicação para a mudança de Moraes parece ser o momento em que ele se torna alvo de críticas nas redes sociais, contrariando seu próprio posicionamento de que pessoas públicas podem ser fiscalizadas e criticadas pela imprensa e cidadãos. Essa afirmação foi realizada pelo ministro ao comentar a ADI 4451, em junho de 2018, e está disponibilizada em vídeo.
“E está correta, pois são servidores públicos e, no caso de autoridades, devem prestar contas do que fazem”, esclarece o especialista, ao comentar que, “talvez, o fato de Moraes ter se tornado uma pessoa mais visibilizada tenha feito com que olhasse o mundo a partir de si, do que ele sentia, e não mais dos valores constitucionais que devem ser protegidos”.
O resultado, de acordo com a mestre em direito público Vera Chemim, é que o ministro teria passado a entender qualquer “opinião crítica” como “agressão”, exigindo bloqueio de contas nas redes sociais, remoção de publicações e criminalização dos autores.
“O vídeo divulgado por Daniel Silveira, por exemplo, continha críticas que, apesar de grosseiras, remetiam ao direito à liberdade de expressão”, aponta a advogada constitucionalista em referência ao ex-deputado federal Daniel Silveira, condenado a 8 anos e 9 meses de reclusão por publicar fortes críticas ao STF, em 2021. Além disso, o deputado estava protegido pelo artigo 53 da Constituição, que prevê que “deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
3. “Era um sistema inquisitório em que o próprio juiz podia tocar” (Moraes, 2017)
Segundo a especialista Vera Chemim, a própria condução do inquérito das fake news por Alexandre de Moraes contraria uma afirmação que ele fez durante palestra em 11 de dezembro de 2017. Na ocasião, o ministro explicou que, antes da Constituição de 1988, era comum investigações começarem “por portaria do delegado” e seguirem diretamente para o juiz, sem necessidade de denúncia.
“Um sistema inquisitório em que o próprio juiz podia tocar”, disse o ministro. Na palestra, Moraes também parabeniza a CF por essa mudança e afirma que juiz não pode participar do processo porque “sua imparcialidade, obviamente, acaba ficando corroída”.
No entanto, em 14 de março de 2019, ele foi designado pelo então presidente do Supremo, Dias Toffoli, para conduzir o inquérito das fake news, apurando “notícias fraudulentas”, denúncias e ameaças à honra e segurança dos membros do STF. A medida foi aberta de ofício, sem instauração de inquérito pelo Ministério Público (MP).
Para a consultora jurídica Katia Magalhães, o Alexandre de Moraes de 2017 prestigiava a atuação do MP como titular exclusivo da ação penal e entendia que o juiz não pode tomar iniciativas dentro dos processos, conforme sistema consagrado pela Constituição.
“Já o Alexandre de Moraes de hoje pratica o sistema inquisitório (por ele criticado no passado)”, analisa Kátia, ao citar como exemplo a determinação realizada pelo ministro, de ofício, para prestação de esclarecimentos por Bolsonaro na última semana. “Juiz não pode ‘observar’ na mídia eventual descumprimento às suas ordens”, aponta a consultora jurídica. “Tem de ser provocado pelo MP”, esclarece.
4. “Não se trata de mero conjunto de trâmites burocráticos, mas um rígido sistema de garantias para as partes visando ao asseguramento de justa e imparcial decisão” (Moraes, 2014)
Outro ponto que chama a atenção, segundo Kátia Magalhães, é o fato do jurista Alexandre de Moraes se posicionar, em 2014, favoravelmente aos direitos e garantias individuais das pessoas sob investigação. Em artigo publicado por ele no site Conjur, em 21 março de daquele ano, Moraes ressaltou ser necessário “estrito cumprimento pelos órgãos judiciários dos princípios processuais previstos no ordenamento jurídico”.
Na publicação, ele citou especificamente “o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, incluído o direito a uma dupla instância em relação aos recursos existentes (direito de recorrer)”. Afinal, “não se trata de mero conjunto de trâmites burocráticos, mas um rígido sistema de garantias para as partes visando ao asseguramento de justa e imparcial decisão”, disse Moraes.
No entanto, Kátia comenta que o ministro assumiu o julgamento de centenas de indivíduos sem foro privilegiado e tem suprimido o papel das demais instâncias judiciárias. “Essas pessoas estão sendo privadas de seu direito constitucional à revisão dos julgados”, explica a especialista.
A ação, segundo ela, contraria outro entendimento do ministro no mesmo artigo de 2014, quando Moraes escreveu sobre a impossibilidade de mudança nas competências constitucionais originárias do STF. “Não guardaria lógica e razoabilidade a possibilidade de se permitir essa ampliação”, escreveu o jurista, em referência ao artigo 102 da CF, que define atribuições da corte.
“Ele entendia que o tribunal só pode examinar os tipos de ações elencados na norma constitucional e crimes comuns praticados por pessoas com foro privilegiado”, avalia a consultora jurídica, ao comentar que, de forma contrária ao que havia afirmado, o ministro passou a julgar centenas de pessoas comuns sob justificativa de interpretação do regimento interno do STF. “Um mero dispositivo administrativo do tribunal, que nem sequer possui status de lei”, menciona Kátia.
5. “Se o Judiciário começar a interferir muito nos outros dois Poderes, estes passam a não cumprir mais as decisões judiciais e o Judiciário perde sua legitimidade” (Moraes, 2008)
Outro fator contraditório, segundo a especialista, foi a defesa que Alexandre de Moraes fez em entrevista ao site Conjur, de 5 de outubro de 2008, a respeito do equilíbrio entre os Três Poderes. No texto, o jurista afirmou reconhecer a impossibilidade de extrapolação por parte do STF, sob pena de os demais poderes recusarem cumprir suas decisões.
No entanto, a consultora jurídica aponta que Moraes atualmente classifica essa recusa legítima como crime de desobediência ou “golpismo”. Além disso, lembra que o magistrado tem usurpado “reiteradamente” atribuições dos demais poderes.
“Durante o governo Bolsonaro [por exemplo], o ministro atropelou o texto constitucional ao decidir sobre a (in)competência privativa do presidente da República no caso da nomeação de Alexandre Ramagem para a Casa Civil”, afirmou Vera Chemim, citando também interferência do STF ao negar indulto presidencial concedido pelo Poder Executivo ao ex-deputado federal Daniel Silveira.
6. “Se for levar tudo para o plano constitucional, vamos ter uma instância judicial única, que será o Supremo” (Moraes, 2008)
Na mesma entrevista ao Conjur, em 2008, Moraes apontou que o Judiciário havia conquistado mais importância com a Constituição, mas que isso não significava superioridade em relação aos demais.
“Ele reconhecia igualdade entre os Poderes perante a ordem constitucional, o que contradiz o trecho da liminar no caso recente do IOF”, exemplifica a consultora jurídica Kátia, ao afirmar que, na decisão, Moraes argumentou que a Suprema Corte precisa “resolver graves conflitos entre os demais Poderes da República, pautado na interpretação do texto constitucional”.
Para a especialista, o Alexandre de Moraes de 2025 enxerga o Judiciário, na figura do STF, como poder moderador, acima dos demais. “Contudo, sob a égide da CF, não há poder moderador, e nem há ‘conflitos’ institucionais entre poderes”, explica, alertando que controvérsias a respeito de temas específicos só podem ser submetidos ao STF para verificação da constitucionalidade de leis, decretos e decisões.
7. “O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas” (Moraes, 2018)
Por fim, os especialistas consultados pela Gazeta do Povo se surpreendem ao verificar que Alexandre de Moraes afirmava respeitar, em 2008, todo tipo de opiniões, tanto “supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais”, como também “duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas”.
No voto do ministro na ADI 4451, de junho de 2018, ele pontuou, inclusive, que o direito fundamental à liberdade de expressão seria garantido às opiniões consideradas “duvidosas, exageradas, condenáveis” e às “declarações errôneas” (trecho da ADI 4451, abaixo).

“Exatamente o oposto do que é hoje”, aponta o especialista em liberdade de expressão André Marsiglia, ao citar que Moraes defendia a liberdade crítica como algo sagrado, mas hoje vê a liberdade de expressão como “risco”.
“E o Moraes de 2019 elevou a si mesmo (e a seus pares) à condição de definidores do que seriam informações falsas e verdadeiras”, acrescenta Kátia Magalhães, citando como exemplo a prisão do humorista Bismarck Fugazza, decretada por Alexandre de Moraes logo após as eleições de 2022, sob argumento de que o comediante do canal Hipócritas teria fomentado “atos golpistas”.
A mestre em Direito Público Vera Chemim também lembra de punições impostas à Revista Crusoé, Oeste, Brasil Paralelo e a sites como O Antagonista por expressarem opiniões críticas, e ressalta que o ministro não pode se sobrepor à Constituição.
“Não é preciso insistir que liberdade de expressão, incluindo a liberdade de imprensa e de informação está prevista no artigo 5º e 220 da CF”, disse. “Portanto, está devidamente protegida, conforme dispõe o artigo 60, como cláusula pétrea”, finaliza.
Fonte. Gazeta do Povo