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16 de junho de 2025

Devemos escolher entre o medo de amar e a coragem de existir – 15/06/2025 – Ilustríssima

Devemos escolher entre o medo de amar e a coragem de existir – 15/06/2025 – Ilustríssima

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[RESUMO] Em tempos de hiperconexão, racionalidade excessiva e obsessão com a competição e a produtividade, o amor é colonizado pela lógica transacional, e a entrega genuína é sabotada pelo medo de não corresponder a expectativas, muitas vezes idealizadas, argumenta autor.

Vivemos tempos paradoxais: enquanto a tecnologia promete conexões infinitas, o amor se tornou um território pantanoso, repleto de armadilhas invisíveis. O gesto de doar-se —afetiva, material ou espiritualmente— transformou-se em ato heroico, muitas vezes bloqueado por medos ancestrais, traumas não elaborados ou condicionamentos sociais que nos ensinam a priorizar a autopreservação.

“Quem guarda com fome, o diabo vem e come”, diz um provérbio popular que ecoa como alerta: reter emoções e negar a partilha do que temos de melhor é convidar a sombra à mesa.

Mesmo aqueles que desejam ser mais generosos frequentemente se veem aprisionados em couraças de racionalidade excessiva ou cinismo. Vivemos uma epidemia de solidão mascarada por likes e mensagens instantâneas. Segundo a OMS, 25% da população mais velha relata sentir-se isolada, um dado que expõe a contradição entre a hiperconectividade digital e a carência de vínculos reais. Por quê?

A resposta está, em parte, no modelo de sociedade que idolatra a competição, o acúmulo e a descartabilidade. Em um sistema que celebra o “homo economicus” —ser maximizador de ganhos e minimizador de riscos—, o afeto é visto como moeda instável, sujeita à inflação emocional. Relações tornam-se “líquidas”, como bem definiu Zygmunt Bauman. Efêmeras, flexíveis e orientadas por interesses. O medo de perder, de se expor ou de ser julgado paralisa gestos espontâneos, transformando abraços em algoritmos.

A cultura patriarcal, ainda hegemônica, reforça essa dinâmica ao associar sensibilidade e afetividade em fraqueza, especialmente para os homens. Desde a infância, meninos aprendem a substituir lágrimas por raiva, ternura por controle.

Estudos apontam que homem evitam expressar emoções relacionadas à vulnerabilidade. O resultado? Uma epidemia de solidão masculina, onde a única emoção permitida é agressividade dirigida para conquistas e competições, disfarce para a dor da desconexão.

Na ausência de espaços seguros para a intimidade, muitos buscam refúgio em distrações digitais. Redes sociais oferecem a ilusão de pertencimento, enquanto a pornografia e as séries em streaming simulam calor humano em formato descartável. Não por acaso, um levantamento com mil pessoas nos EUA aponta que 81% delas amam mais seus animais de estimação que alguns de seus familiares.

Para fugir do confronto com o outro, que na realidade é confronto com a projeção se si mesmo, vale tudo, incluindo “amor sintético” pelas bonecas sexuais ou bonecos de recém-nascidos, os reborns. Porque não traem, não fazem críticas, não exigem, mas tampouco desafiam a crescer. Esse amor unilateral, ainda que legítimo, não nutre a alma, que precisa de espelhamento e alteridade para florescer.

Há uma culpa silenciosa em quem ousa priorizar afetos em um mundo obcecado por produtividade. A sensibilidade é medicalizada como depressão ou ansiedade; a introspecção, confundida com antipatia.

Vivemos uma “desumanização civilizada”, onde até o amor é colonizado pela lógica transacional. Matches são avaliados como investimentos, e relacionamentos, como contratos com cláusulas de escape. A meritocracia, nesse contexto, serve de álibi para a indiferença —afinal, se todos são responsáveis por seu sucesso, por que compartilhar recursos ou empatia?

Amar, porém, não é mercadoria, mas verbo concreto. Como ensina a psicologia analítica, o amor exige confronto com a sombra. Nossos medos de abandono, rejeição ou perda de controle. Jung lembra que “o oposto do amor não é o ódio, mas o medo”, emoção que alimenta a necessidade de dominar e possuir.

Amar é prática diária, semelhante à jardinagem. Podar máscaras, regar com paciência, adubar com perdão. São Francisco, mestre da fraternidade radical, ensinava que o amor só floresce quando renuncia ao poder, inclusive o poder de moldar o outro à nossa imagem.

Essa crise se reflete também na sexualidade contemporânea. Jovens descrevem encontros como “conexões wifi”: rápidos, intensos e sem senha. Conseguem despir o corpo, mas não a alma.

Estudos associam disfunções sexuais com ansiedade de desempenho, dificultando tanto o prazer quanto a intimidade, justificando o consumo significativo de medicações que só servem para garantir a performance sexual. A entrega genuína é sabotada pelo medo de não corresponder a expectativas, muitas vezes distorcidas por pornografia e romances idealizados.

Reumanizar nossas relações exige coragem de dessacralizar a autossuficiência, priorizar conversas presenciais, praticar a escuta ativa (sem interromper ou julgar) e ressignificar a sensibilidade como força. Empresas pioneiras já adotam políticas de direito à desconexão e licenças para cuidar de familiares, reconhecendo que produtividade não se sustenta sem saúde emocional.

Como na metáfora da colcha de retalhos, amar maduramente é costurar histórias com fios de imperfeição. Não se trata de buscar almas gêmeas, mas de cultivar “almas colidentes” —que nos desmontam e remontam, ampliando nossa capacidade de conter paradoxos, aquela em que os amantes se aprofundam, sem medo de se afogar, conscientes de que o amor liberta para estabelecermos, consciente e reflexivamente, nossas relações de dependência e servidão.

Jung adverte: “O amor custa caro e nunca deveríamos tentar torná-lo barato”. “Seu preço é a rendição ao desconhecido em nós e no outro. […] Amor é como Deus: ambos só se revelam aos seus mais bravos cavaleiros.”

A vida sem amor é existência em escala cinza —por mais que brilhem os filtros de Instagram. Resta escolher se continuamos reféns do medo ou nos lançarmos, como cavaleiros bravos, na busca pelo único tesouro que não cabe em cofres, a coragem de existir, plenos, em toda nossa humana fragilidade, com todos os riscos, dores e maravilhas que isso implica. Porque uma vida sem amor é, no fundo, uma existência sem graça e sem cores —apesar de muito rica, poderosa ou ocupada que ela pareça ser.



Fonte.:Folha de S.Paulo

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