O som quase sempre vem primeiro. Certa vez, parecia o barulho de uma bomba prestes a cair em nossas cabeças. Era a araponga-do-horto, um pássaro que nunca vi, mas jamais esquecerei o canto: um assobio fino e contínuo que aumentava de volume e intensidade. Um pouco assustador.
Estávamos no Parque Estadual Intervales, a 260 km de São Paulo, numa viagem de observação de aves. A atividade não é exatamente um filme da Branca Neve, com passarinhos coloridos saltitando pela floresta. Exige paciência, olhar atento e ouvidos apurados, em caminhadas pela natureza em silêncio e a passos lentos. Parece meditação.
Às vezes é melhor que cinema. Como quando vi bem de perto um bando de saíras, aves pequenas bem coloridas, forrageando numa árvore do parque. A sensação foi de um breve encontro com o desconhecido, com seres encantados que resolveram dar o ar da graça naquela paisagem verde monocromática. Isso vira um vício, e você precisa correr atrás de outro avistamento mágico.
Foi assim que caí na viagem da Brazil Birding Experts pela Mata Atlântica, com um dos melhores guias de aves do Brasil, o ornitólogo Carlos Otávio Gussoni, doutor em zoologia e moderador do eBird, plataforma de registro de pássaros. Dono de um par de ouvidos dignos de super-herói, Gussoni usava uma caneta de laser para mostrar a localização dos bichos (a luz era apontada perto do animal, nunca em cima).
Em sete dias de passeio, registramos 263 espécies de pássaros. Todas as noites, Gussoni sentava com a turma de cinco pessoas para passar a lista a limpo. Eu era a única brasileira do grupo, então ele falava o nome da espécie em inglês e em português. Os nomes brasileiros eram muito mais divertidos: não-pode-parar, caga-sebo, assanhadinho, risadinha, pichororé, piolhinho, gritador, fruxu, topetinho-verde etc., sem contar a infinidade de Marias (maria-cabeçuda, maria-cavaleira) e Joões (joão-porca, joão-teneném).
Em Intervales, ficamos na Pousada Lontra, com quartos espaçosos e vistas para um lago. No primeiro dia, numa maratona das 7h às 19h, anotamos 140 espécies, incluindo um sabiá-cica (um papagaio que canta como um sabiá) e quatro tipos de corujas.
Uma delas, a coruja-listrada, achamos à noite, quando saímos de lanterna por uma estrada de terra. Já um casal de corujinhas-do-sul dormia de dia numa palmeira na entrada do parque, um lugar que só achamos graças ao guia local e monitor ambiental Gerson Paiva Rodrigues, que acompanhou Gussoni.
Intervales é um parque especial para observadores de aves, também conhecidos como passarinheiros. Foi aqui um dos pontos de entrada no Brasil dos primeiros “birdwatchers” estrangeiros nos anos 1990, no início do ecoturismo de avifauna.
Embora o país tenha a terceira maior diversidade de pássaros do mundo, atrás da Colômbia e Peru, passarinhar é uma atividade pouco abraçada pelos brasileiros. Rodrigues conta que 80% de seus clientes são estrangeiros.
“Estamos no centro da maior área contínua de Mata Atlântica do mundo, no meio de quatro parques”, explicou Rodrigues sobre a importância de Intervales, ainda que reclame que o parque esteja maltratado, com estradas de terra que precisam de manutenção.
A segunda parada da viagem foi na pousada Macuquinho Lodge, em Salesópolis, 115 km de São Paulo. O local foi pensado nos mínimos detalhes para quem gosta de passarinho. O jardim é repleto de bebedouros para beija-flores e vimos sete espécies, como o elegante rabo-branco-de-garganta-rajada.
Os comedouros também foram criados para quem gosta de fotografia, com espelho d’água, chuveirinho e até comida escondida para não atrapalhar a foto. É só sentar e curtir o espetáculo. A pousada tem dois “hides” (esconderijos para ver animais) e trilhas. Encontramos também esquilos caxinguelês e uma família de saguis-caveirinha, ameaçados de extinção.Mata Atlântica
A poucos quilômetros da pousada, visitamos um brejo em busca de outra raridade, o bicudinho-do-brejo-paulista. O passarinho preto surgiu num emaranhado de arbustos após ser chamado no “playback”, uma técnica que deve ser usada com parcimônia para atrair aves (o canto do pássaro pré-gravado é tocado numa caixinha de som ligada ao celular, e o animal se aproxima para ver quem está em seu território).
Mas só vi o vulto do bicudinho, pulando entre galhos. Por ser tão raro –menos de 200 existem na natureza devido à perda de habitat –, não insistimos na gravação para não perturbá-lo. Ficamos bons minutos olhando para arbustos do brejo à espera de outro avistamento, em vão.
Ainda que a frustração faça parte do pacote, é bom lembrar que muitas aves trazem no canto seu principal atrativo. Além do assobio balístico da araponga-do-horto, me arrepiei com o chamado da saudade, o canto mais melancólico da Mata Atlântica.
“Um lamento tão triste que mais parecia o grito de sofrimento de um ser da floresta”, relatou o naturalista inglês Ernst Holt em 1928, de acordo o site Wikiaves (biblioteca com imagens e sons da maioria das aves brasileiras, www.wikiaves.com.br).
A saudade apareceu na última parada, o Parque Nacional do Itatiaia, a 260 km da capital paulista. Ficamos no Hotel do Ypê, a 1.250 m de altitude, com chalés ao estilo suíço no meio da floresta tropical. O restaurante é decorado com pinturas de pássaros, e sua varanda é repleta de comedouros. Muitas jacuguaçus circulam pela propriedade, onde à noite avistamos uma coruja-orelhuda numa árvore.
Outro hotel do parque, o Simon, está abandonado, assim como seu campinho de futebol, um cenário apocalíptico. No entanto, a Trilha dos Três Picos, que sai da região, está bem cuidada e rendeu bons momentos.
Muitas vezes, nosso guia Gussoni se desdobrava para nos mostrar um bichinho alado, como a tovaca-cantadora. Esperamos 20 minutos para ela se aproximar, até ser espantada de vez por uma dupla de corredores. Mas observar Gussoni observando era uma atração por si só.
“Ele tem tanto entusiasmo, e conhece cada barulhinho desta floresta. É impressionante”, disse o inglês Simon Thompson, também guia de pássaros que já viu mais de 7.500 espécies. Era sua terceira vez em Itatiaia e não se cansava de ver os mesmos passarinhos. “É sempre legal reencontrar velhos amigos.”
*A repórter viajou a convite do festival Avistar com apoio da Embratur
Fonte.:Folha de S.Paulo