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25 de junho de 2025

Quando um drive-thru de hambúrguer chega a Jericoacoara – 24/06/2025 – Cozinha Bruta

Quando um drive-thru de hambúrguer chega a Jericoacoara – 24/06/2025 – Cozinha Bruta

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Sem desdenhar de nenhuma das tragédias que se abatem sobre o mundo –do extermínio de populações inteiras à agonia solitária da jovem de Niterói–, uma notícia aparentemente desimportante me deu uma pontada no coração.

É a inauguração, anunciada para a próxima segunda-feira (30), de uma unidade drive-thru de uma cadeia de fast food em Jijoca de Jericoacoara, no Ceará.

Jeri, com suas dunas e horizonte infinito, foi meu paraíso mental por uns bons 20 anos. Dói para caceta ver em que ela se transformou.

Estive pela primeira vez lá em 1989, pouco depois de uma reportagem do Washington Post que louvava sua beleza agreste: areia onipresente, vento incessante, sol impiedoso e conforto submínimo.

A jornada desde Fortaleza envolvia viajar e pé no ônibus, depois na caçamba lotada de uma Toyota Bandeirante, agarrado ao santo antônio, pelas dunas. As pessoas se hospedavam nas casas dos aldeões, não havia eletricidade nem água encanada. Naquele julho, fui testemunha da pomposa inauguração do primeiro orelhão (jovens, pesquisem) fincado no chão de areia.

Fiquei extático. Voltei seis ou sete vezes, perdi a conta.

Vi as primeiras pousadas transadinhas e os restaurantes com alguma pretensão gastronômica. Vi a chegada da internet por satélite e frequentei uma lan house que bem poderia ser uma sauna.

Vi o olho grande de paulistanos, cariocas, italianos e portugueses que compraram a vila a preço de banana. Uma senhora me fez visitar sua casa, a dez passos do mar, para em seguida oferecê-la por um milhão de reais, valor nominal de então, valor que eu não tinha e provavelmente nunca terei.

Na última vez em que lá estive, talvez 2015, talvez 2016, já havia filiais de marcas famosas de chinelo e maiô –beachwear, como dizem na costa poente do Ceará. Mas ainda existia um restaurante de pescadores em que a gente escolhia o peixe

Desviei o olhar quando Jeri se tornou destino de celebridades e subcelebridades, festas patrocinadas e réveillons milionários. Quando houve a construção, nos arredores, de um aeroporto internacional, uma penca de resorts –e uma patética piscina gigante azul, formada pela água da chuva que encheu um buraco de onde tiraram areia para concretar tudo isso.

Areia é o que não falta em Jeri. A vila em si é inacessível para carros comuns, sem tração nas quatro rodas. As dunas móveis impedem a abertura de estradas, então o que se vê são picapes machudas, buggies dos passeios com emoção, motos valentes e uns jumentos abandonados à própria sorte.

Esse é o público-alvo do drive-thru de hambúrguer e milk-shake. Menos os jegues, é claro.

A lanchonete fica no trevo de Jijoca, sede do município e ponto final do asfalto. E que se tornou uma atração turística em si, com lagoas de água de chuva, azul-esverdeadas e límpidas.

A lanchonete de Jeri representa o bote final do capitalismo sobre os pequenos negócios. É o Oxxo que devora a mercearia da esquina. É a paisagem de todas as cidades médias do Brasil tomada pelas mesmas placas de ótica, farmácia, perfumaria, cooperativa de crédito, açaí e convênio dentário.

Dói uma caceta ainda maior admitir que eu desempenhei um papel feio nessa história. Se um milhão eu tivesse naquela tarde em que saía do bar do Alexandre, talvez fosse um dos colonizadores de Jericoacoara. Mas nunca levaria minha SUV para a fila do milk-shake, se é que alguém se importa com com isso.


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Fonte.:Folha de S.Paulo

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